terça-feira, 22 de julho de 2008

Cristina:


Morreste. Assim. De chofre. Sempre fui contra o «culto dos mortos»... Até perceber que o que nos faz voltar, a homenagem que presto aqui, hoje e sempre, em qualquer outro lugar, é à parte de ti que continua viva em tanta gente, em mim, na Natureza, na memória do Universo.Só descobrimos a Verdade da Vida, quando perdemos alguém que amamos. Agora sei que só a morte separa, só a morte faz perder. Por vezes, nem a morte. Estava tão errada em tudo... Está tudo tão errado!!! E esta sofreguidão de querer transmitir, de querer mostrar ao mundo que a essência da felicidade é DAR VALOR ao que temos, não me deixa conformar com o facto de ninguém querer OUVIR.
Foi preciso ver tão de perto o sofrimento, para saber que nunca tinha sofrido. Foi preciso ensinares-me desta maneira ingrata, tudo o que eu nunca quisera aprender. Cresci muito com a tua morte, mas quem disse que eu queria crescer? E se agora estivesses aqui podias ensinar-me ainda mais. E tão melhor. E o que faço com o que aprendi? Ensino? Ninguém se importa. E para quê censurá-los se, até te perder, também eu andava alienada?
Ensinaste-me a viver. Mas com a tua morte? E sem me dares tempo de te agradecer, sem me deixares ter tempo de aprender a ser um pouquinho como tu.
Naquela dorida manhã de Junho ouvi da minha mãe uma agonia desconhecida, mas imediatamente identificada. Tentei, instantaneamente, dar alguma lógica ao que ela não dissera ainda, pensando nos elementos mais idosos da família. Quando ouvi o teu nome... Não adianta tentar pôr em palavras o indizível. Como é que foste morrer assim? Eu sei, desculpa. Também não percebes, nem te conformas porque lutaste, como sempre e em tudo, lutaste até ao fim. Morreste por algo que amavas e tentavas salvar e talvez nunca ninguém te recompense por isso. As nuvens choraram, toda a Natureza gritou e sofreu connosco, não por nos teres abandonado, mas porque, todos sabemos, de nós foste arrancada. Logo a ti, que a sentias como nunca irão sequer entender esse sentir. A ti, que vivias tão em harmonia, que nem tinhas de pensar para que fosse assim. Não percebo porque te levaram a ti, que lutavas para que o mundo ficasse como no princípio; perfeito e livre. Foste única nessa luta, não entendo porque tinhas de ser tu.
Os que te conheciam melhor, ou os que seguiram mais a tua vontade do que os próprios sentimentos, tentaram não trazer muitas flores. Houve um raminho de trepadeira, um carvalho bebé, eu devolvi-te as flores secas que colhemos, há um ano, no Alentejo. O Pedro apanhou umas florinhas do chão e devolveu-tas, juntamente com o Guia de Aves. Explicou aos nossos sobrinhos que Deus precisou de alguém como tu no Céu, para o ajudar a tomar conta dos passarinhos: e não há ninguém como tu, além de que, estarás mais perto. Assim, não te mandou os binóculos. Deu-mos a mim, mas não me servem de muito: tenho tentado todos os dias, mas ainda não consegui ver-te aí em cima.
O meu pai acha que Deus quis poupar-te o sofrimento de veres tudo aquilo que amavas ser destruído. Eu prefiro acreditar em todos eles e no meu velho e eterno sonho de que um dia estaremos todos juntos de novo.
Ainda na tarde do teu funeral, plantámos o carvalho no jardim. Foi como se te tivesse visto renascer, ou reviver, naquela plantinha. Foi como se, por momentos, todos estivéssemos a renascer, pela tranquilidade que é ajudar algo a viver. E eu sei, como todos souberam, que estavas ali a sorrir, como estarás sempre em tudo de bom que fizermos. E eu já não dava comigo a pontapear a injustiça, desesperada com ela. Senti-me súbita e estupidamente calma, no meio dos que cavavam um pouco mais a terra, parecendo procurar alguma coisa além de suporte para as frágeis raízes.
E ali ficámos não sei por quanto tempo, respeitosamente silenciosos, à espera. De te não abandonar.
Vim tentar, uma vez mais despedir-me de ti, mas acho que só vou conseguir receber-te todos os dias. Sabes que nunca tinha visto um pôr-do-sol, que queria fazê-lo numa ocasião especial, com alguém que me amasse… Sei agora que esse alguém sou eu e que nunca vai haver momento mais especial do que este, em que escrevo para alguém que me queria ouvir, alguém que compreende cada sentimento transbordado. Para ti, que ouves palavras não ditas e lês papéis em branco. Alguém que simplesmente sente. És um ser esquisito que me assusta quando penso como és – tão perfeita – agora és o meu anjo da guarda. Voltarei mais vezes para falar contigo, para vir ter comigo e nunca te esquecerei. E neste momento vejo, com uma clareza nunca antes atingida, o som do teu riso, da tua voz e sinto, com uma força que tudo domina, o teu olhar, o teu carinho. Ouço, mais nítidas que estas lágrimas que gritam por ti, as vozes das ondas, das gaivotas e da areia onde estendias somente o teu corpo, para a sentires melhor… e o sol e a lua e a tua ria e as árvores e os bichinhos e o céu, que me dizem que estás ainda aqui a tomar conta de nós. E olho a tua pureza e afasto-me, com medo de sonhar outra vez. E vejo o teu sorriso terno, mas não sei o que me queres dizer… Até um dia…

Marta Tavares, 1998

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